No curto prazo, peso argentino deve sofrer e manter a conversão favorável; no longo prazo, argentinos esperam estabilização da economia.
Por Raphael Martins, g1
Javier Milei, novo presidente da Argentina, toma posse em dezembro para mandato de quatro anos. — Foto: Natacha Pisarenko/AP
A eleição de Javier Milei para a presidência da Argentina deve trazer dias de apreensão no mercado financeiro local, com efeitos notáveis no câmbio. O peso argentino teve uma perda expressiva de valor durante a disputa, e a confirmação de que propostas ousadas do economista ultraliberal serão levadas a cabo podem agravar uma situação já difícil.
A desvalorização da moeda nacional veio acompanhada de um combo de problemas macroeconômicos, que inclui uma inflação altíssima (mais de 140% em 12 meses), falta de reservas em dólar, endividamento e aumento da pobreza. Por outro lado, criou um fenômeno turístico: uma legião (ainda maior) de turistas brasileiros no país vizinho.
Se o peso argentino vale menos, o real fica mais poderoso. O dólar blue, principal cotação paralela da moeda americana, subiu mais de 207% em 12 meses. Da casa dos 370 pesos em janeiro, chegou a 1 mil pesos pouco antes das eleições.
“O câmbio nesse patamar possibilita um upgrade nos serviços, com excelentes hotéis, restaurantes, vinhos e passeios a custos abaixo do que normalmente teriam. Isso já aconteceu outras vezes e sempre que ocorre, vemos a demanda aumentar”, diz Marina Figueiredo, presidente executiva da Associação Brasileira das Operadoras de Turismo (Braztoa).
O cenário vantajoso de conversão de moeda consolidou Buenos Aires como um dos principais destinos turísticos dos brasileiros em 2023, diz a entidade. E a incerteza causada pelas propostas de Milei geram aversão em investidores e podem ampliar as perdas do peso argentino, em especial no início do governo.
Economistas ouvidos pelo g1 dizem que as medidas radicais propostas pelo novo presidente, como dolarizar a economia e extinguir o Banco Central, têm riscos claros para a política econômica e precisam de ampla adesão do Congresso, o que Milei ainda não demonstrou que terá.
“Milei confirma que pretende seguir com a dolarização, mas não há nada concreto, nem um plano do que deve ser feito. Isso demanda uma emenda constitucional, como foi feita no Plano Cavallo, nos anos 1990”, lembra o economista-chefe da MB Associados, Sérgio Vale.
“Precisaria de um cenário fiscal muito mais equilibrado e uma força política muito grande no Congresso para aprovar essas medidas. E ele está muito distante de ter isso”, afirma.
Em reportagem do g1 sobre os desafios do novo presidente, o economista da LCA Consultores Chico Pessoa reforçava a percepção e diz que a dolarização “é uma ideia tão difícil de encontrar suporte em questões práticas que quem votou em Milei por essa questão, vai se decepcionar”.
Assim, imprevisibilidade pode retirar ainda mais dinheiro internacional de um país que sofre com a falta de reservas e levar o peso argentino a se desgastar ainda mais nos próximos dias e meses, de tal forma que a Argentina pode ficar ainda mais barata para o turista brasileiro no curto prazo.
Com o feriado desta segunda (20) no país, é o pregão desta terça-feira que vai dar os primeiros sinais do efeito Milei.
Invasão brasileira
Há poucos lugares mais familiares para o turista brasileiro que o restaurante Don Julio, em Buenos Aires. Quem consegue uma mesa no consagradíssimo exemplo da “parrilla argentina”, parece ter se transportado de volta: nos arredores só se ouve a língua portuguesa.
O restaurante está em 19º lugar na lista do “World's 50 Best” de 2023, prêmio é organizado anualmente pela revista britânica Restaurant. É o mais bem colocado em território argentino.
Com o mar de brasileiros que procura o melhor restaurante do país, o trabalho para conseguir um lugar começa cedo: quando a reportagem do g1 esteve por lá, em novembro, já havia uma fila quilométrica para o almoço às 11h da manhã — 30 minutos antes de o Don Julio abrir as portas.
O restaurante Don Julio, em Buenos Aires: 19º na lista de melhores restaurantes do mundo — e lotado de brasileiros. — Foto: Reprodução/ Instagram Don Julio Parrilla
Mas não é só de fama que se vive: um almoço com entrada, prato e sobremesa, acompanhado de uma garrafa de vinho pode custar menos de R$ 150 por pessoa. O Don Julio não se propõe a ser barato — e não é, em especial para os argentinos —, mas o valor é bem mais baixo que qualquer casa semelhante em metrópoles brasileiras.
Ainda no roteiro gastronômico, Buenos Aires tem três dos 50 bares mais conceituados pelo “World's 50 Best”. O Tres Monos (11º), o CoChinChina (26º) e a Florería Atlántico (30º) ficam em Buenos Aires e todos servem coquetéis do mais alto nível que custam de R$ 20 a R$ 30. Em São Paulo, a faixa de preços para lugares semelhantes já ultrapassou os R$ 40.
E há mais um atrativo na capital portenha: os preços de hospedagem em bairros do mais alto padrão na capital argentina giram na faixa dos R$ 300 a diária. São valores difíceis de competir com o que se pratica no Rio de Janeiro ou em polos turísticos do Nordeste.
Os preços levam em conta a conversão do real para peso argentino na casa dos 170 pesos por real, e que corresponde ao dólar blue. É uma cotação que pode ser encontrada por brasileiros nas casas de câmbio ou convertendo pela Western Union.
Nos cartões de crédito, costuma valer o dólar MEP. Há um pequeno desconto, mas continua sendo uma transferência bastante favorável ao brasileiro.
Lounge do CoChinChina, em Buenos Aires: 26º melhor bar do mundo pelo World's 50 Best — Foto: Raphael Martins/g1
Enoturismo em alta
Para os fãs de bons vinhos, nem se questionam as vantagens. Rótulos de vinícolas famosas, do topo de linha, são encontrados em terras argentinas por um terço do preço — às vezes, menos. Na parte oeste do país, onde fica a cidade de Mendoza, o enoturismo também bomba, com brasileiros voltando para casa carregados de novas garrafas.
Iduna Weinert, diretora comercial da Bodega Weinert, diz que a desvalorização expressiva do câmbio nos últimos dois anos motivou o público que ela recebe na Argentina a gastar mais nos rótulos escolhidos. Cerca de 70% dos visitantes da vinícola são brasileiros.
“O enoturismo cresceu em bases sustentáveis nos últimos 10 anos. O que mudou é que vemos hoje o brasileiro procurando vinhos mais caros, tanto aqui na região como em enotecas. São vinhos de alta gama, edições limitadas… Aumentou o volume total e o de vinhos mais caros”, diz a empresária.
Para ela, porém, o trabalho do setor de turismo argentino daqui em diante é não deixar a Argentina cair em um estereótipo de destino turístico barato. “Se entrarmos em um caminho de estabilização econômica e social, o turismo vai se beneficiar”, diz.
Bodega Weinert, em Mendoza: brasileiros representam 70% do turismo de vinhos na empresa — Foto: Divulgação/Weinert
Isso porque, como qualquer crise econômica, o argentino teve perda do potencial de consumo e sente como a sensação maior de insegurança impacta o desejo do país como ponto turístico.
Iduna crê que um bom destino de viagem precisa ter benefícios maiores do que a “conveniência peso versus real”. “O consumidor é muito exigente, vem viajando muito e tem experiência internacional. A construção do valor agregado tem a ver com um bom atendimento, boa estrutura de transporte etc”.
“A Argentina voltando a ser um país normal, terá uma competição com Rio, Miami ou Paris. Prefiro estar nessa liga a viver a perda de capital humano e de trabalho que se sofreu nos últimos anos”, afirma.
Sobre a possível dolarização, Iduna nem coloca o assunto à mesa por ora. Pelos mesmos motivos dos economistas ouvidos pela reportagem, ela também não acredita que os planos de Milei possam ser executados em curto prazo.
Com isso, ela também espera a resposta nos próximos fechamentos do peso argentino para entender os rumos iniciais do país pós-eleição. Todos os olhos estarão na percepção de quem comanda os fluxos de dinheiro para dentro ou para fora do país.
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