Isso quer dizer que o percentual de brasileiros que não têm certeza de quando vão fazer a próxima refeição está acima da média mundial.
Por Fernanda Berlinck, Marih Oliveira
Como o maior movimento de mobilização civil do Brasil ajudou o país a sair do Mapa da Fome
Em 1993, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, lançou a campanha "Brasil Sem Fome". A iniciativa alertava o país para a realidade de que 32 milhões de pessoas que viviam abaixo da linha da pobreza, segundo os dados divulgados, na época, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
"O país só muda de rumo quando uma sociedade se mobiliza", disse, então, sociólogo. Foi por meio do movimento da ONG Ação da Cidadania que se cristalizou a emblemática frase de Betinho: "Quem tem fome, tem pressa". Veja mais no vídeo acima.
Demorou para que o Brasil conseguisse sair do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU). O país passou a década de 1990 e o início da década de 2000 criando e implementando estratégias voltadas para a segurança alimentar e nutricional até que, finalmente, em 2014, superou o índice o colocava os piores colocados no ranking global da subalimentação.
Em 2022, o Brasil voltou ao Mapa da Fome, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Isso quer dizer que o percentual de brasileiros que não têm certeza de quando vão fazer a próxima refeição está acima da média mundial. Mais 33 milhões de brasileiros passam fome todo dia.
📰 Nesta semana, o g1 publica uma série de vídeos e textos sobre o impacto da fome no desenvolvimento infantil. Nesta reportagem, você vai:
- conhecer a relação entre fome e política;
- ver algumas das políticas públicas que ajudaram o Brasil a sair do Mapa da Fome em 2014;
- entender o que dizem os especialistas sobre como voltamos ao patamar da miséria;
- e saber se é possível o Brasil combater a fome novamente.
A fome como uma questão política
O g1 conversou com três especialistas que estudam, de diferentes maneiras, a fome e a desnutrição no Brasil. É unânime entre eles que a fome e a política andam lado a lado.
- Francisco Menezes é consultor de políticas da ONG ActionAid, economista e presidiu o extinto Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), de 2004 a 2007. Para ele, o acerto de determinadas políticas públicas possibilitou um período no Brasil em que o acesso aos alimentos fosse mais facilitado.
"Havia uma rede de proteção social que aqueles mais frágeis economicamente poderiam recorrer. Isso funcionando possibilitou resultados que, inclusive, acabaram fazendo com que o Brasil saísse do Mapa da Fome", analisa Menezes.
- Daniel Carvalho de Souza, além filho de Betinho, é também o presidente do conselho da ONG Ação da Cidadania, que atua no combate à fome em todo o Brasil. Ele afirma que "não é possível despolitizar a fome". Souza defende que a fome é combatida através da "vontade política".
"A alma da fome, como disse o Betinho, é política, e é só através de decisões e vontades políticas que a gente consegue acabar com a fome", diz ele.
- Claudio Alberto Sefarty é neurocientista, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador de pesquisa do Laboratório de Plasticidade Neural. Ele defende que, em um país desigual, a fome e a má nutrição precisam ser tratadas por políticas públicas.
"O que não se pode imaginar é que privatizando essa questão você vai resolver. Não, não resolve. Somente com políticas públicas orientadas para a questão de desigualdade", pondera.
Políticas públicas no combate à fome
Implantado em 1955, o PNAE é um dos mais antigos programas de suplementação alimentar do Brasil — Foto: Fábio Tito/g1
Entre as políticas públicas de combate à fome destacadas por especialistas, estão:
👩🌾 PAA - Programa de Aquisição de Alimentos
Criado em 2003, durante o primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o programa tem como objetivo promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar. Por meio dessa iniciativa, é possível que agricultores, cooperativas e associações vendam seus produtos a órgãos públicos.
Em 2021, o governo de Jair Bolsonaro (PL) substituiu o programa pelo Alimenta Brasil, que foi encerrado em 2023, com o início do terceiro mandato de Lula.
Em julho deste ano, o Senado Federal aprovou a volta do PAA, determinando que, sempre que possível, um mínimo de 30% das compras públicas de gêneros alimentícios deverá ser direcionado à aquisição de produtos de agricultores familiares e de suas organizações.
🚿 Programa Água para Todos/Cisternas
Iniciado na primeira gestão Lula, o programa de distribuição de cisternas ganhou o nome Água Para Todos durante o primeiro governo de Dilma Rousseff, em 2011.
A ação tem como objetivo assegurar a melhoria das condições de vida da população extremamente pobre, através da elevação da renda familiar per capita da população e levando água a famílias sem acesso.
Em 2021, uma reportagem do jornal "Folha de S.Paulo" mostrou que, ao longo do mandato de Bolsonaro, o Água Para Todos sofreu uma redução orçamentária de 96% em comparação com 2014.
Em julho deste ano, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome anunciou a retomada do programa, que estava praticamente paralisado.
Além da mudança do nome do programa para Cisternas, o governo anunciou que investiria R$ 562 milhões em 2023 para a construção de equipamentos para acúmulo de água direcionados a famílias do semiárido e da Amazônia.
🍛 Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)
Em 1948, com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, consolidou-se o direito à alimentação. Já em 1954, o Ministério da Educação criou o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), implantado no ano seguinte.
O objetivo é garantir alimentação aos alunos de toda a rede básica matriculados em escolas públicas, filantrópicas e em entidades comunitárias (conveniadas com o poder público), por meio da transferência de recursos financeiros. Em muitos casos, a refeição distribuída na merenda escolar é a única ou a principal desses alunos.
Em março deste ano, o governo Lula anunciou que estima investir R$ 5,5 bilhões no programa em 2023 e beneficiar 40 milhões de alunos de escolas públicas.
Vale lembrar que a alimentação escolar tornou-se um direito dos alunos da rede pública em 1988, com a promulgação Constituição.
💳 Bolsa Família e Auxílio Brasil
Lançado em 2003, o Bolsa Família é o maior programa de transferência de renda do Brasil e já foi reconhecido internacionalmente por já ter tirado milhões de famílias da fome. O programa virou um símbolo do governo Lula.
Após 18 anos de existência, o programa foi substituído em 2021, no governo Bolsonaro, pelo Auxílio Brasil.
No entanto, com a volta de Lula à Presidência em 2023, ocorreu a retomada do Bolsa Família, com um modelo de benefício que considera o tamanho e as características familiares.
O futuro da fome no Brasil
A volta do Brasil ao Mapa da Fome da ONU, em 2022, se deu por uma série de questões.
O economista Francisco Menezes cita o desmonte de políticas públicas voltadas para o combate à desnutrição nos últimos anos e a falta de investimento e manutenção de programas existentes há anos no país. Para ele, esse processo está diretamente relacionado ao empobrecimento da população e ao crescimento do desemprego.
Além de falar sobre a extinção de programas de governo ao longo da gestão Bolsonaro, Daniel Carvalho de Souza cita a pandemia de Covid-19 como um fator grande influência no retorno aos índices elevados de miséria. Segundo Menezes, a pandemia não nos deixou preparados "para o desastre que veio com a fome a partir de 2020".
Daniel Carvalho de Souza, filho de Betinho presidente do conselho da ONG Ação da Cidadania, afirma que não há como prever quando o Brasil vai combater a fome. Mas que ele acredita que "o estrago de agora" ainda vai repercutir por muitas décadas. O passo principal, diz, é reconstruir as políticas que sofreram desmonte e investir para, mais tarde, colher os frutos do amplo acesso da população à alimentação adequada.
Já o neurocientista Claudio Sefardy avisa que a situação é de emergência. Considerando que há uma geração de crianças que estão há quatro, quase cinco anos, sofrendo com a má alimentação e a pobreza extrema, há urgência em tentar reverter esse quadro.
"Se levarmos em consideração a primeira infância e que os períodos críticos do desenvolvimento infantil são até os 5 anos de idade, talvez até os 7, vemos que estamos em cima da linha e muito atrasados na recuperação dessas crianças", alerta.
"Se continuássemos com esse quadro de fome por mais quatro anos, teríamos uma geração inteira perdida."
🎥 Equipe da série:
- Reportagem: Fábio Tito, Fernanda Berlinck, Gessyca Rocha, Iolanda Paz e Marih Oliveira
- Produção: Fábio Tito, Fernanda Berlinck e Iolanda Paz
- Roteiro: Fernanda Berlinck e Marih Oliveira
- Pesquisa: Fernanda Berlinck e Gessyca Rocha
- Pesquisa Acervo: Natália Fontoura e Tatiana Barbosa
- Fotografia: Fábio Tito e Miguel Folco
- Imagens adicionais: Acervo Globo, Gustavo Wanderley e Stephanie Rodrigues
- Narração: Fernanda Berlinck
- Edição e finalização: Marih Oliveira
- Motion Graphics: Verônica Medeiros e Vitória Coelho
- Ilustração: Max Francioli
- Coordenação: Ardilhes Moreira, Guilherme Luiz Pinheiro, Marcelo Sarkis e Tatiana Caldas